terça-feira, 28 de julho de 2009

reminiscências

Reminiscências...
Eu me reportei a várias memórias soltas, aparentemente, após assistir dois filmes, já lançados há tempos , mas que só agora assisti.Um deles foi "O ano em que meus pais saíram de férias" dirigido pelo Cao Hamburger um filme espetacular e o outro " Um certo olhar", com direção de Marc Evans e também uma boa forma de entretenimento e crescimento interior.
Afora o fato de ambos serem bons filmes, tinham em comum personagens que usavam brilhantemente a capacidade de abstrair realidades duras. A diferença está claramente no olhar que lançamos sobre uma realidade.
No primeiro, um garoto que se vê sozinho em meio a um universo estranho e até um pouco hostil, criando um mundo próprio e lúdico a fim de alienar-se da dura condição na qual se encontrava . No segundo , a morte brusca de uma jovem que, também por ter crescido em uma condição extremamente complicada( sendo filha de uma autista de alta habilidade)lançava-se a conhecer pessoas e criar personagens para suas pretensas histórias de ficção. Queria ser escritora.
Fui de imediato remetida à minha infância, que foi marcada por momentos um tanto incomuns durante um certo período. Lembrei de um trecho de um romance de Tolstói " Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira".
Eu venho de uma família matriarcal moderna pelo lado materno. Minha mãe deu continuidade a linha de ação de minha avó , Martina. Ela foi mãe de treze filhos e trazia-os contidos em sua imagem dominante, criando um padrão de força e valor difícil de ser atingido por qualquer mortal. Talvez porque as condições adversas a que foi submetida pela vida tenham permitido que desenvolvesse tais habilidades. Um ser vigoroso e incansável. Nascida em 1908, casada aos quatorze anos e mãe de sucessivamente treze crianças. Marido ausente, guerras , recessão, privação ,e repressão eram marcas indeléveis desta geração. Minha avó era uruguaia, nascida em Melo. Voz grave, corpo troncudo, olhar doce e marcado pela história difícil que trilhou. Imensa capacidade de labor e renovação de tudo aquilo que tocava. Panos muito brancos, rendas muito engomadas, tudo muito limpo , alimentos bem preparados. São lembranças que guardei até quase poder tocá-las, embora minha avó tenha falecido aos 64 anos , por inúmeras complicações que a levaram muito rápido. Dos treze filhos, dois morreram ainda bebês, fato comum nos dias que viveu, os demais foram talhados por sua verve indômita e por seu imenso talento para forjar novas e melhores realidades para os seus.
Dentro de sua solidão, povoada pela imensa família que criou espraiou nas mulheres a semente de sua força, já nos filhos homens a sombra foi capaz de ofuscar suas vitórias e exaltar seus fracassos. As seis mulheres sobressairam-se. Criaram famílias, trabalharam e transformaram a dura realidade da qual foram protagonistas em sua infância e juventude. Sempre muito difícil e truncado , o futuro aconteceu e as adversidades foram superadas. O país se modernizou e vieram as novas gerações, poupadas das condições difíceis que elas conheceram intimamente.
Minha mãe herdou o cetro , como filha mulher e mais velha das mulheres, substituiu minha avó perante a família e tornou-se a sucessora. Minha avó ao partir deixou aos cuidados de minha mãe toda a sua prole.
Não é preciso dizer o impacto que a morte de minha avó gerou sobre todos e dos tempos difíceis que seriam até transitar aquela perda.
Minha mãe fechou-se em copas, tornou-se sombria e circunspecta. Não entendiamos.
A herança de minha mãe não foi simples. Um de meus tios, dos mais jovens, entregue ao alcolismo e sujeito a sucessivas internações passou a ser monitorado por minha mãe, embora pouco tempo depois acabasse morrendo, aos 32 anos.
O que sei é que durante este período inicial a vida em minha casa tornou-se muito triste e silenciosa e deixou dores provavelmente ainda encobertas pelo ritmo no qual a vida se move.
Os domingos passaram a ser vividos em duas partes, pela manhã, eu e meu irmão brincavamos em casa e nos preparavamos para a tarde, na qual a programação era invariavelmente visitar o cemitério e limpar o túmulo de minha avó e posteriormente dar uma passada no sanatório local onde meu tio ficava internado.
Apesar de mórbido demais , aparentemente, lembro deste período com compaixão e até uma certa nostalgia. Tudo devido ao meu olhar de criança e a minha capacidade de imaginar histórias e me encantar com aqueles detalhes.
No cemitério meu pai e meu irmão não desciam do carro , meu irmão lia vorazmente tudo o que via, sua técnica de superação, instintiva, enquanto meu pai pacientemente esperava e conspirava para o alívio das dores de minha mãe.
Eu adorava brincar perto de uma fonte de água, que eu pensava como uma piscina de cemitério em minha fantasia infantil, mas o melhor era olhar as fotos das lápides e os nomes incrívelmente engraçados. Ficava encantada olhando as fotos e imagens e pensando sobre suas histórias, suas expressões orgulhosas e imponentes diante daquela cena de morte. Alguns tinham o olhar triste e sorumbático, outros pareciam mesmo mortos em suas fotos. Algumas lápides eram lindas, verdadeiros palacetes e tinham anjos , demônios e santos, degraus como se elevassem o túmulo ao céu.Capelas pequeninas. Então se eu achasse algum mausoléu com a porta aberta era o êxtase. Aquilo era o máximo, eu quase podia vê-los , meus personagens, aliás, sentia como se os conhecesse, me apropriava de suas histórias e acabavam sendo minhas companhias naquele brinquedo aparentemente lúgubre. São histórias deliciosas que residem em minhas memórias.
Saindo daquele universo fantasmagórico era hora de visitar o sanatório, no qual eu não podia entrar e era uma tortura esperar até que minha mãe retornasse contando aquelas passagens hilariantes protagonizadas pelos moradores daquele estranho lugar aos meus olhos. Meu grande sonho era transpor aqueles portões enormes que davam asas a minha imaginação. Minha mãe que saía do carro munida de maços de cigarros, biscoitos e balas retornava cheia de histórias suculentas que eu ouvia hipnotizada e quase podia sentir e ver aquelas pessoas esquisitas que ela descrevia em atitudes impróprias , mas que para mim eram parte da brincadeira. Quando os moradores estavam muito agitados as visitas eram curtas e percebia-se a agitação. Eram todos personagens de minhas histórias infantis. Afinal para uma criança cantar e dançar pelado ou fingir que é uma galinha são fatos absolutamente comuns. Aqueles eram momentos muito alegres porque eu podia ver minha mãe sorrindo e se surpreendendo com coisas que eu entendia muito bem.
É o olhar que emprestamos aos fatos que acaba tornando-os magníficos , ricos e inesquecíveis. Agradeço a esses tempos pelo treinamento intensivo que vivi em minha criatividade. Guardo muito desta criança que se encantou até com a tristeza e conseguiu extrair dela uma tela colorida e que vive em minhas memórias . É a leveza que precisamos aprender com as crianças ou pelo menos não podemos desaprender ao tornarmo-nos crescidos e que pode fazer da vida uma lição prazerosa sobre amar, compreender , respeitar e aceitar.

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