terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Corta!

Ao final da tarde estava aturdida conversando com algumas frases que havia lido e que ficaram discutindo com ela. A dialética se liquefazia em alguma parte postiça de seu corpo, apenas ligada a ele por fios tênues , impulsos eléttricos, sopros energéticos como se fosse uma outra caminhando lado a lado , uma desconhecida falando de um mundo atraente e instigante .Não achava uma vaga no estacionamento do supermercado.
Ir ao supermercado era sempre um mal necessário e colocava em ação a habitante autômata que sempre sorria ao cumprimentar o guarda e esperava educadamente a vez. Mantinha um ar complacente e reservava sempre algumas frases acetinadas para o momento de escolher maçãs ou pesar os ítens.
Previsivelmente jamais entraria na fila dos idosos e deficientes e cumprimentaria o caixa ao chegar e ao partir.
Aquela era a personagem mais desonesta e repugnante, a educada. Talvez um dia ela desejasse praguejar contra todos os supermercados e seus clientes abotoados e rosnar, transgredir, expurgar definitivamente o sorriso de sua face, como se enfiasse os dedos na massa de modelar . Dividir com o mundo a sua chateação,  estacionar em local proibido, atrasar-se para um compromisso. Quem sabe não atender o telefone ou não ligar de volta, fingir que não percebeu ou ainda deixar atrasar uma conta.
Sabia que não conseguiria transgredir, chorar em público , jogar as compras no chão ou deixar de cumprir imediatamente o que havia proposto anteriormente com alguém.
Ela simplesmente não conseguia arrancar de dentro dela aquela disciplina espartana da razão.
Sempre agiria como um ser equilibrado por mais enlouquecida que estivesse, as palavras gritavam de dentro dela enquanto testava uma lâmpada com um ar plácido estendido sobre o rosto e imaginava aquela lâmpada totalmente estilhaçada e o sangue escorrendo de suas mãos, mas não, nunca seria a personagem ensandecida. Não ergueria a voz e muito menos pareceria descontrolada. O descontrole não é educado. Ela tinha classe e jamais denotaria qualquer mesquinhez. O mundo simplesmente não poderia tocá-la ou ela não alcançava o mundo como é.
Não correria riscos e não sentiria dor, não . Não há tempo a perder com sentires desnecessários. Que sentires são desnecessários? Que pergunta mais obtusa! Um sentimento é sempre um sentimento. É uma parcela da nossa identidade a ser metabolizada . Que virtude existe na simulação condolente da hipocrisia.
Que  opção errada fora assinalada a ponto de desviar-se a ferir as regras da lógica.
As maçãs estavam horríveis e o calor parecia diferente a ponto de não sentí-lo. Esqueceu a bolsa de compras, teria que usar sacolas plásticas. Uma contrariedade .
A moça do caixa parecia animada e tecia laçadas com as palavras . Um aparelho ortodôntico lhe cobria o sorriso. Combinava com outra funcionária com sotaque do norte para irem a um show à noite. Devia ser um show de pagode. De repente ela sentiu pena da espontaneidade com que as duas conversavam . Sem subterfúgios, vergonhas ou pudores do inapropriado. Pareciam à vontade expondo seus conteúdos simples. Estavam desarmadas.
Sentiu uma estranha gratidão por aquela paródia burlesca da vida. Não achou um melão decente. 
Mergulhou naquele flagrante como se fosse uma deixa para sair de cena.
- Corta!

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